Gestão fiscal

ICMS nas transferências entre empresas (ADC 49): a saga jurídica que preocupa empresários e tributaristas

A discussão envolvendo o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas transferências entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte tem gerado considerável apreensão para inúmeras empresas. A demora na resolução desse tema e a consequente insegurança jurídica têm sido fontes de preocupação para muitos especialistas em tributação. 

Para compreender o cenário atual, é fundamental retroceder até 1996, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) emitiu a Súmula 166, que estabeleceu que o simples deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do ICMS. Essa posição foi reafirmada em 2010, no julgamento do Tema Repetitivo 259. 

Em abril de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu uma decisão que, à primeira vista, beneficiava as empresas, ao determinar que os Estados não poderiam mais cobrar ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte (ADC 49). Entretanto, essa decisão trouxe consigo uma consequência significativa: afetou os créditos de ICMS das empresas. 

O ICMS é um imposto não cumulativo, o que significa que o valor pago em etapas anteriores pode ser utilizado como crédito para reduzir o valor devido em etapas subsequentes. Com a decisão de abril de 2021, o uso desses créditos ficaria restrito ao estado de origem da mercadoria, gerando desequilíbrios no fluxo de caixa das empresas, já que poderia haver um excesso de créditos em um estado e a obrigação de pagamento em dinheiro em outro. 

Somente em abril de 2023, após diversos adiamentos, o STF finalmente determinou que a decisão que excluiu o ICMS nessas operações passaria a ter efeito a partir de 2024. Isso significa que os estados ainda podem cobrar o tributo até o final de 2023, exceto nos casos de processos administrativos e judiciais em andamento até 29 de abril de 2021, data em que a decisão da ADC foi publicada. Esses casos estão resguardados, permitindo que os contribuintes com decisões favoráveis não paguem o ICMS nessas operações. 

No entanto, muitos contribuintes optaram por não recolher o ICMS nessas operações sem recorrer aos tribunais, com base em uma legítima expectativa e confiança na jurisprudência estabelecida pelos tribunais superiores. Ocorre que, após o STF determinar que a decisão teria efeito somente a partir de 2024, tribunais como o TJSP e o TJMT têm permitido que os estados cobrem o ICMS em exercícios anteriores. 

Adicionalmente, diversos tribunais administrativos têm se recusado a aplicar a decisão da ADC 49, argumentando que ela não possui status de coisa julgada. Isso resulta em processos parados ou decisões desfavoráveis aos contribuintes, causando prejuízos evidentes. 

Essa situação continua em aberto, uma vez que o segundo Embargos de Declaração interposto ainda está pendente. O Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom) busca esclarecimentos do STF para assegurar que os contribuintes que não recolheram o ICMS, independentemente de terem ou não ingressado com ações judiciais, não sejam obrigados a efetuar pagamento retroativo. 

Foto de Kindel Media/Pexels

Outro efeito colateral da ADC 49 ainda não resolvido é que ficou estabelecido que os contribuintes têm direito à manutenção dos créditos de ICMS nas operações anteriores e à transferência desses créditos, sob regulamentação estadual até 1º de janeiro de 2024. Caso os Estados não regulamentem a transferência de créditos até essa data, os contribuintes terão o direito de fazê-lo por conta própria. 

Essa demora na definição relacionada aos créditos que devem ser mantidos cria incerteza jurídica. O Congresso Nacional ainda não legislou sobre a manutenção e transferência dos créditos, apesar da decisão do STF. O Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) ainda não apresentou esclarecimentos ou regulamentações sobre o assunto. 

Passados quase 30 meses da decisão do STF, não se observa progresso significativo nos projetos que tratam da situação estabelecida pela ADC 49. A reforma tributária absorveu grande parte da atenção legislativa, enquanto os projetos de lei PLP 116/2023 (anterior PLS 332/2018 e apensado ao PLP 148/2021) e PLP 36/2023, que abordam o tema de maneiras distintas, permanecem sem evolução. 

Para complicar ainda mais o cenário, há forte resistência dos Estados em relação ao PLS 332/18, agora PLS 116/2023. O PLS gerou desconforto entre os Estados, principalmente devido ao fato de que, nos embargos à ADC 49, o STF permitiu o aproveitamento de créditos, mas deixou a responsabilidade de regulamentação para as unidades federativas. Conforme o voto do ministro Edson Fachin, relator da ADC 49, os Estados têm até 31 de dezembro para regulamentar o tema, sob pena de transferência automática dos créditos pelos contribuintes. Para parte dos Estados, a atuação do Legislativo nessa questão desrespeitaria o que foi estabelecido pelo STF. 

O ponto mais controverso é a inclusão do parágrafo 5º ao artigo 12 da Lei Kandir no PLS, que prevê que, por opção do contribuinte, “a transferência de mercadoria para estabelecimento pertencente ao mesmo titular poderá ser equiparada a operação sujeita à ocorrência do fato gerador de imposto”. Isso significa que as empresas poderão optar por recolher o ICMS, sujeitando-se à tributação e arrecadação de acordo com a vontade do remetente de mercadorias em operações interestaduais de transferência entre estabelecimentos do mesmo titular.

Na perspectiva de alguns Estados, essa medida interferiria no princípio federativo e afetaria os orçamentos públicos estaduais, modificando a distribuição de receitas entre os entes federativos de origem e destino. Além disso, alguns benefícios fiscais são calculados com base no valor dos débitos de ICMS, e a não incidência desse imposto reduziria o potencial desses benefícios fiscais. 

Para completar, persistem outras questões em aberto: 

  • Como calcular o montante do crédito de ICMS a ser transferido entre Estados? A metodologia de cálculo precisa ser definida com segurança jurídica.
  • Há também dúvidas sobre como o ICMS Substituição Tributária será calculado em transferências interestaduais, uma vez que a decisão do STF e os projetos de lei não abordam esse ponto crucial, afetando diversos setores econômicos.

A decisão do STF em relação ao ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte trouxe uma série de desafios e incertezas para as empresas brasileiras. Enquanto aguardamos esclarecimentos adicionais do STF e regulamentações estaduais, as empresas precisam monitorar de perto as mudanças na legislação e buscar orientação especializada para garantir o cumprimento das obrigações fiscais e a proteção de seus interesses. A resolução dessa complexa questão tributária terá um impacto significativo nas operações comerciais e financeiras de muitas empresas no Brasil. 

Gostou de saber mais sobre a ADC 49 e a saga jurídica que preocupa os empresários? Continue a visita em nosso blog e descubra como a transição do ICMS para o IBS vai impactar os estados.

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